sexta-feira, 22 de abril de 2016

ADRIANE GARCIA SOBRE "LAMBE-LAMBE"

A fotografia despudorada de Sérgio Fantini ou os olhos da empatia

 Por Adriane Garcia

    Passo pela cidade, minha cidade, tão feinha Belo Horizonte por onde passo. Lá onde veste seu melhor vestido, vou vez em quando, vou para lazer. No “todo dia”, percorro o que é para ficar no escuro.
    Há livros que não mudam nada, há livros mudos. Há livros que nos mudam, verdadeiros incômodos a cutucar verdades guardadinhas. E há livros que mudam a forma como olhamos as coisas. E isso é irremediável.
    Agora não tem mais jeito, abri este livro de fotografias. Este lambe-lambe não contente em lançar seu flash de magnésio pela sua própria vida, fez o favor de publicar suas impudências. Lançou luz sobre o escuro e não parei mais de ver a mendigaria, os moradores de rua, os gatos no parque, os camelôs e sua algazarra, os favelados, os hippies vendendo suas bugigangas e expondo essas diferenças do que somos, os meus preconceitos e os meus pós-conceitos flagrados.
    Nunca mais passar pelo Parque Municipal apenas passando, agora é ver os velhos, a sua solidão, os bancos sempre ocupados e essa vontade de gritar que quero me sentar na grama porque não aguento mais esse mundo imundo. Agora é olhar para o passado e me lembrar de minha mãe empregada doméstica, tão incômoda e tão necessária na casa dos patrões. Mamãe mulata, linda, jovem, passando por cima de assédios para não perder emprego e mudando móveis de lugar na ingenuidade amável de quem pensa que está agradando.
    Minha cidade que se droga para ver, que se droga para não ver. Os carroceiros de minha infância, os cavalos que comovem todas as crianças, pois nenhuma criança jamais entendeu a violência contra os cavalos. Agora saio pensando na violência contra os carroceiros, sua vida de açoite, essa transferência de quando as metáforas estão materializadas, quando sou interrompida pela inércia calculada dos jogadores de dama da praça 7 de Setembro. Quando um grito de um pastor evangélico quer sobrepor toda identidade. Cidade louca. Eu penso: independência ou morte.
    Valei-me. Continuo o álbum e vejo: que nunca entrei numa barbearia. Sempre as olhei de fora com muita curiosidade, as suas cadeiras-máquinas-do-tempo. E este cachorro na porta, fotografado pelo lambe-lambe, eu posso jurar que já o vi.
    É pela manhã que saio todos os dias, transporte público, esses motoristas que trabalham seis viagens sem parada, que almoçam em 15 minutos, que fazem suas necessidades fisiológicas em banheiros fétidos que as empresas de ônibus não se dão ao trabalho de mandar limpar. Digo a eles bom dia porque sei que não é fácil. Muitos respondem, surpresos que alguém ainda os veja. Agora é assim.
    Saio clicando com a lente do lambe-lambe, a cidade vai mudando aos pouquinhos e ainda carregando um tanto do que foi há 117 anos. Há 300, quando ainda era um arraial, mas trazia tantos pés descalços. Ao menos o amor mudou. Eu também já achei estranho as duas meninas se beijando publicamente. Como seria uma cidade que se beijasse?
    Nas páginas entre os contos, encontrei esses 3×4, amarelando. Anônimos que se tornam especiais apenas ali, na lateral da máquina-caixote de fotografia. Estão chegando na rodoviária, vêm tentar uma nova vida nesta Belo Horizonte, acreditam na promessa deste nome. E agora, iluminada por quem não tem medo de lamber o vidro, de verificar qual lado da chapa é doce e qual é o amargo, talvez eles possam se localizar.
    Passei a andar com este livro. Vou e volto para casa. Sim, eu encontro o caminho.
A verdadeira literatura é a que nos mostra o quanto estamos perdidos.

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