sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Se um Calvino...

 

  Há alguns muitos anos, o escritor Francisco de Morais Mendes me emprestou seu exemplar de Se um viajante numa noite de inverno; antes, falou bastante sobre sua própria leitura do romance. Demorei a começar a minha. Li um tanto e interrompi (já não me lembro do motivo). Alguns dias atrás retomei-o, terminei agora. 

   Enquanto isso... O escritor Ernani Ssó realizou seu sonho de adolescente ao traduzir para o brasileiro o Dom Quixote. A ótima edição saiu no fim de 2012; estou lendo. Conversando com ele e lendo seus artigos no coletiva.net, adquiri a chave para não me aborrecer com a saga de Cervantes: o humor. O Quixote sempre chegou aos meus ouvidos, a vida toda, como "o clássico", o que o revestia de muito respeito, dificuldade e, com certeza, chatice. Quando decidi encará-lo, na tradução dos viscondes portugueses, não me decepcionei: desisti com duas horas de leitura (e havia separado um fim de semana inteiro para dar partida da leitura).
   Se um viajante é muito melhor se você usar esta chave: é uma ótima brincadeira (com tudo o que o Calvino traz em todos os seus textos - quem já leu sabe) sobre a escrita e a leitura literárias, sobre a construção de um romance, sobre o mercado editorial (produção, tradução, edição, marketing...). Me diverti muito, o tempo todo.
   Há muito mais ali. Deixo aqui apenas a dica, se me permitem.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

BALANÇO DE 2013

   Este foi mais um ano bom. 
   Dei as duas séries semestrais de oficina no Letras e Ponto (ano 5, acho); duas séries semestrais no Centro Cultural SESC JK; além das oficinas de leitura, curtas, em Natal, e nos centros culturais da prefeitura de BH.
   Lancei Novella, segundo livro de contos pela Jovens Escribas, (ver comentários críticos aqui neste blog) e também por ela a segunda edição do esgotado e agora totalmente revisado A ponto de explodir (2008), com uma capa foda do Guga Rodrigo Godoy Schultze (ainda fora de circulação).
   Apresentei, com Ana Elisa Ribeiro, a leitura performada Foi bom para você? - aonde ler te leva, no Sarau do Memorial. Aliás, com ela, porque também lançou seu Meus segredos com Capitu pela J. Escribas, fiz lançamentos em São Paulo, Natal, João Pessoa e Diamantina, este com direito a longo bate-papo no Museu do Diamante. Fizemos também uma oficina curta, de escrita, a Saraula, no Cefet.
   Trabalhei, contribuindo no roteiro, com Rodrigo Leste, em mais três de suas peças paradidáticas (ano 20?).
   Conversei sobre o Leite derramado, do Chico Buarque com os participantes do projeto Tertúlia Literára, na UFMG.
   Voltei a jogar futebol de salão.
   
   

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

PRÊMIO LITERÁRIO

 

  O Prêmio "João-de-Barro" de literatura para crianças e jovens foi lançado esta semana (início de dezembro/2013). Sou da coordenação, ao lado de outros colegas da FMC. Este ano teremos duas categorias: apenas texto e livro ilustrado.
   Há duas novidades que merecem atenção: o fato de que não há mais distinção entre infantil e juvenil e este "livro ilustrado" (ambas desde a edição passada).
   Quando esta ideia surgiu, vários escritores se posicionaram contra (eu, inlusive). Nos parecia, então, que o prêmio estava apenas facilitando o trabalho das editoras; entregando de bandeja um produto quase pronto etc.
   Com o tempo, refletindo melhor e depois de receber as inscrições, manusear os originais (e ter a oportunidade de "ver com os olhos dos candidatos") e, principalmente, ver o livro vencedor editado por uma major, ficou claro que a ideia é muito boa.
   O livro para crianças não pode prescindir de um projeto gráfico específico. Isso já está mais que comprovado. Como disse o escritor e artista gráfico Cláudio Martins, ele não é apenas texto, mas o conjunto de conceitos que vemos, ao final, nas livrarias.
   O mercado é assim e o Prêmio, ao adotar essa categoria, cumpre de forma mais completa seu princípio: revelar novos autores e novas obras. Além do autor de texto, há também o autor do projeto gráfico e o autor das ilustrações (muitas vezes são apenas duas ou até uma pessoa só para as três funções). Para o autor do texto chegar ao mercado, o Prêmio o convoca a antecipar um processo, queimar uma etapa por conta própria.
   Não há uma facilitação para o mercado, mas para o/s autor/es, que terão uma oportunidade/produto mais próximo/s do mercado. 
   O que se pode ressalvar: o preço de se contratar projeto gráfico, ilustração e impressão de três vias pode ficar alto (quando não se tem uma coautoria, parceria). É fato, funciona um pouco como funil. Por isso decidimos manter a categoria de texto. Há oportunidades maiores.
   A não distinção entre infantil e juvenil ainda não está totalmente clara para mim. E a extinção do júri infantil ou juvenil também não me soa bem, mas são processos que vão sendo testados.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

SAUDAÇÃO AOS NOVOS (FMC)

   Algumas postagens recentes, no facebook, do meu amigo Rodrigo Teixeira, me animaram a fazer esta singela saudação.
   Em janeiro, completo 29 anos de serviço público na cultura, em Belo Horizonte. Para comemorar, quero falar dos colegas que chegaram nos últimos quatro anos na Fundação, através do concurso específico.

   Minha primeira boa impressão foi perceber, numa reunião de trabalho do nosso departamento de bibliotecas, o amor que vários deles têm pela literatura. São bibliotecários e especialistas em diversas áreas, alguns deles também escritores, quase todos leitores intensos.
   Durante a greve deste ano, conheci outros, de outros departamentos: jovens politizados, articulados, participativos, alguns com forte espírito de liderança. Pela primeira vez, a Cultura foi citada nas assembleias gerais. Atuamos no sentido estrito das reivindicações, mas eles também criaram momentos de alegria com canções, fantasias e cartazes.
   (Quando a prefeitura pensou em nos deslocar, nós que estamos desde o tempo de "secretaria de cultura", eles, ainda "novos de casa", mantiveram uma prudente e compreensível distância de nossa resistência.)
   E há o pequeno grupo de colegas de sala (além dos vários outros espalhados pelas bibliotecas), garotas inteligentes, empenhadas, que mantêm o bom humor para trabalhar, apesar das agruras que a rotina do serviço público nos impõe.
  Por essas (e quase nenhuma outra), ainda é um prazer trabalhar diariamente na prefeitura e fazer coisas boas pela cultura de minha cidade.
   Acrescente-se a esta satisfação pessoal a convicção de que esta geração promete ser tão combativa quanto fomos. Sempre houve movimentos para eliminar a Cultura, ou ao menos rebaixá-la. Parece que, se ainda tentarem, ainda encontrarão resistência, mais uma vez.

domingo, 24 de novembro de 2013

MALAFAIA E JONATHAS

   Jonathas é o gaúcho de 23 anos que conheci semana passada. Sujeito simpático, bem disposto, boa prosa. Nos poucos contatos que tivemos em cinco dias, fiquei sabendo que ele

  se separou porque gosta de trabalhar muito;
  aos 13 anos fez um curso na empresa em que o pai trabalhava;
  a partir dos 15 não parou mais de trabalhar: passou por todas as funções relacionadas ao que aprendeu (metalurgia, tornearia, algo assim);
  ao conhecer Santa Catarina, decidiu viver na praia; 
  atualmente é zelador de um prédio, recepcionista de uma pousada, entregador de marmitas, motorista e um faz-tudo-o-que-aparecer: está fazendo uma poupança para os tempos da faculdade de "advocacia";
  na alta temporada, trabalha como garçom na areia e torna-se sócio do patrão ao explorar o lote vago ao lado da pousada como estacionamento;
  financiou um apartamento que pretende transformar em fonte de renda extra (o pai o ajuda a pagar com parte da herança a que ele teria direito);
  acaba de trocar um carro velho por outro menos velho (e na transação sacrificou algumas centenas de reais para ajudar o vendedor, que é seu amigo);
  apesar de estar evidentemente acima do peso, garante que a saúde é ótima, pressão a 12 por 8 e não conhece dentista;
  atento, denuncia a precária politica pública de saúde da prefeitura;
  ao saber que sou escritor, diz, feliz e cúmplice, que adora ler, inclusive está esperando chegar um livro que encomendou por sugestão do pastor Silas Malafaia.

   O pastor Silas Malafaia está de olho no bolso do Jonathas.
   Jonathas, não permita que o pastor Silas Malafaia roube seu dinheiro.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

NOTA SOBRE O VELHO SAFADO

pro Bortolotto e pro Caio e pro Marcelo Montenegro e pro Ademir Assunção

   
   
   Acabei o 2º grau e fiquei uns quatro anos só vendendo meus livrinhos pelas ruas de BH. No pré-vestibular, de tanto assistir às aulas de literatura, acabei virando amigo do professor. Um dia, sem mais, me abordou no corredor com um livro: "Acho que você vai gostar disso". 
   Era o Cartas na rua, recém-lançado pela Brasiliense.
   Antes de publicar meu primeiro livrinho de poemas em 1979, eu tentava escrever contos, mas por ler muito crônicas, o que saía era algo terrivelmente ingênuo e mal ajambrado. Ao terminar de devorar o Cartas e as Notas de um velho safado, escrevi meus primeiros contos.
      Mas a historinha de que mais gosto foi com o Mulheres: eu trabalhava numa cidade vizinha e, morando e estudando em BH, ia e voltava todo dia. Assim que o livro chegou na Coltec, comprei, mas, como tinha aula à noite, deixei para começar no dia seguinte. No dia seguinte tinha que pegar alguma coisa numa gráfica, mas a coisa ainda ia demorar para ficar pronta. Para dar um tempo, procurei uma lanchonete: faria um lanche e pegaria o Mulheres
   Porém, havia um bar no meio do caminho...
   Lá pelas 11h, meia dúzia de cervejas e muitos cigarros, tinha passado da página cem e dado muita risada sozinho. Chutando o balde do compromisso profissional, peguei a namorada na hora do almoço e fomos pro barraco dela acompanhados de pizza e vinho.
   Bela tarde foi aquela...

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

RODRIGO LESTE LÊ NOVELLA


Parabéns pelo seu Novella, que arrisco a definir como um livro blues.


A triste paisagem urbana dos seus contos, as personagens, às vezes sórdidas, às vezes mórbidas, mas sempre acachapadas por uma realidade desumana e opressora, remetem à Chicago e outras metrópoles americanas (e, por que não, do mundo?) onde os negros e pobres e fudidos em geral arrancam de seus instrumentos e gargantas os lamentos que expressam espanto e perplexidade diante do mundo-cão que avança contra os seus calcanhares. – Sebo nas canelas, moleque, o bicho é feio!


Por sair do lamento e partir pro escracho rasgado, a canalhice deslavada, o cinismo sem fronteiras, gostei demais do conto Pra cima com a vida!, o melhor do livro, na minha opinião (ri à beça!).


Apesar de todo o cuidado que sei que você tem com o acabamento do texto, a técnica não se sobrepõe, o truque fica bem guardado e os contos trazem o frescor da espontaneidade criativa, do escrever “em cima do joelho”, do estilo “desleixado” de quem teve a ideia, a colocou no papel e pronto: foi pro forno (sem permitir ao leitor pensar que toda a obra foi revista inúmeras vezes até que você se dê por contente com o “resultado final”. Final???).


Como Jimi Hendrix que antes de morrer, dizem, tinha a ideia de fazer experimentações com música sinfônica; como Picasso que sempre que era rotulado como “cubista”, ou “num sei o quê”, mudava tudo e aparecia com inusitado estilo que desconcertava público e crítica, acredito que o atributo do artista é experimentar sempre.  - Atitude que tira o nosso conforto de navegar no universo do já conhecido, dominado e bem sucedido. – Assim, sem embromações, tomo a liberdade de sugerir que você parta pra quebradeira, rompa com tudo que já fez antes, destrua as trilhas e caminhos já percorridos em Novella e nos seus livros anteriores e parta para outras tentativas e experimentações. Queime navios, mano, pode te fazer bem!

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

DOIS POETAS: ADEMIR E ALEXANDRE

   

   Estava para comentar o livro do Ademir Assunção, A voz do ventríloquo (Edith), que havia lido numa manhã de sol no Museu da Pampulha, à beira da lagoa, na companhia de turistas, capivaras e jacaré, e fui adiando, adiando... fiz aqui (http://sergiofantini.blogspot.com.br/2013/09/livros-mao-cheia.html) um comentário geral sobre vários outros bons livros, deixei o dele para depois, para falar em detalhes; adiei mais um tiquinho... e ele venceu o Jabuti. Agora nem vou falar mais do livro, de que gostei muito. Só registrar o prazer que foi recebê-lo na Merça, na festa de lançamento do Novella, em maio (e me sopraram que ele é de ir pouco a eventos); do prazer de ouvi-lo com sua banda na Funarte, há uns anos; do prazer de ter bebido com ele outras vezes; da satisfação de ter estado a seu lado (e de outros companheiros) na criação do movimento Literatura Urgente (http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=763:catid=28&Itemid=23); do aprendizado que tem sido folhear seus outros livros de poemas e ler seus textos sempre indignados, sempre nos lembrando que as lutas sempre continuam. Salve, Pinduca!

   Outro livro de que gostei e estava enrolando para comentar é o Exília (Dobra), do Alexandre Marino. Aproveito então para falar do poeta, deixando o livro para comentaristas mais perspicazes (http://tertuliapaodequeijo.blogspot.com.br/2013/06/exilia-alexandre-marino.html). Nós nos conhecemos em 1979, na porta do Maletta: eu vendendo meu folheto mimeografado No lar dos inseguros, ele, o seu Operários da palavra. Quando aceitou trocar livros, fiquei logo fã, pois o dele era livro mesmo. Isso me marcou, alterou meu modo de pensar a vida. Era um de meus primeiros contatos com o mundo literário exterior e, por sorte, com a experiência da generosidade. Ficamos amigos pra sempre. Nesses mais de 30 anos, temos compartilhado palcos, cervejas, amizades, discussões políticas, confidências... E ainda temos muito tempo pela frente. Salve, Zé!

domingo, 20 de outubro de 2013

ISADORA KRIEGER LÊ NOVELLA

Coiso, "A vida é assim mesmo" começa num pique ótimo, gosto muito do uso da repetição como link, deixa o texto fluido, "todo mundo tem um passado", "todo mundo tem um passado", e como tem. Ah, e o humor é maravilhoso, aquele tipo de humor que não é um mero entretenimento, é esperto, debochado, "a gente rezava ajoelhados, de lado, e, quando terminava, eu esperava ele levantar e aproveitava a posição, já viu, né?", "Quando conheci, já tinha abandonado a literatura, recebia uma mesada da ex-mulher, juíza de um tribunal. Ô sujeito amargo! Ressentido e mal-humorado. Encontrava a filha domingo. Me levava junto pra almoçar. Depois me trazia em casa, via algum seriado na TV e, ui, ainda era bom com a língua", ai, que vida... 

A primeira frase do texto da "Lanona" já tinha chamado a minha atenção no dia do lançamento do teu livro na Mercearia, "Todo mundo comeu Lanona", muito bom! não sei explicar direito, mas, às vezes, leio a primeira frase de um texto e penso: Nossa é assim que se começa, mesmo, é esta a frase. Por exemplo, não me esqueço da primeira frase de um conto da Andrea Del Fuego para antologia Geração Zero Zero, é assim: "Meu marido é um palhaço", e ainda tinha um truque ótimo, porque no fim o marido era palhaço mesmo, um profissional da risada. Bom, mas voltemos a tua Lanona, aí vem o Obira, que mesmo feio pra caralho comeu a Lanona, feio e chato, "nossa, como Obira é chato", e como isso é verdade, Sérgio, rs, e o Pata, que fala pelos cotovelos e certamente é mais um chato, rs. A quadrilha que você desenvolveu em torno da Lanona é demais, um personagem puxando o outro, até o ótimo desenlace, quando o narrador diz: "Eu também comi Lanona. Comi e ainda como, ela exige (!), diz que casou por amor. Eu acredito.", muito bom isso, mesmo depois da Lanona dar pra todo mundo, "eu acredito", só não sei se eu acreditei no amor da Lanona, rs, na verdade, eu sempre duvido quando o assunto é amor.
Agora vou direto para a "Chuva", que foi um dos que eu mais gostei, bem bonito, Sérgio. Você é muito bom em colocar a gente no lugar do personagem, a gente sente o clima, a atmosfera do ambiente, se transporta mesmo. Neste caso senti até a aflição da espera, e, como o texto é narrado no presente esta sensação aumenta. O trecho que começa com "Não é aquela calça jeans, não é aquela saia curta nem a saia longa....." que vai até "não é ninguém que tenha passado por aqui nesta esquina nos últimos vinte minutos, mas eu ainda espero", além de ser poético, mostra bem como acontece na "realidade", quando você espera alguém, ansioso, olhando os rostos, é ou não é ele/ela, não é, não é. Gosto muito também do mistério deste texto, como você deixa o leitor no suspense e não diz o que aconteceu, só mostra um estranhamento, "o clique do fone no gancho antes que eu pudesse dizer que". Ah, e o final, o final é sutil, lindíssimo, "você, chegando, fecha a sombrinha, olha para o chão e puxa o capuz para as costas", clap clap clap.
E "Daqui pra frente" também é um dos meu preferidos, eu já tinha lido este, você me mandou por e-mail uma vez. Ah, e como dá vontade de alguém que dê as coordenadas de um encontro, assim, com um cuidado, uma atenção, mesmo que os próximos dias se tornassem muito mais difíceis.
Alguns textos a gente lê e sente como uma prosa poética, outros a gente lê e sente como uma poesia em prosa, falando assim, parece que não existe diferença, mas existe sim, isso ficou bem claro para mim quando conheci a poesia do Cesare Pavese. Citei isso porque o "Jamais reutilize uma embalagem vazia" me pareceu o segundo caso. Além disso, achei o texto denso, passa uma sensação de incômodo, de lugar sujo, de solidão dolorida, realmente a "brisa não ameniza".
Agora, "Um amigo de Deus" é foda, putz, Sérgio, que retrato da atualidade, da loucura, da religião, da falta de entendimento entre as pessoas, e mesmo assim, engraçado, tragicômico na verdade. Aqui repito o que disse antes, de como você é bom em colocar o leitor na situação, no clima do ambiente. Achei isso lindo: "De repente, gritos! Olhamos para o cruzamento: dezenas de ciclistas fluorescentes. Passaram velozes e sua animação foi diminuindo na madrugada, nos devolvendo o silêncio e o frio (!)". E isso é genial: "O vento continuava fustigando as folhas da Bíblia quase caindo na sarjeta", e um pouco depois, "Bateu um vento mais forte e a Bíblia, afinal, caiu na sarjeta." uau, que imagem! Outro lance que achei demais, além do nome Denoel (Denoel é muito Denoel, rs), foi o personagem que tira uma com a cara do Denoel, "Ah, eu sou a minha própria igreja." neste momento pensei: Ele tá dizendo que é Jesus Cristo?, e ri, dei muita risada do coitado do Denoel, rs. Bom, e as frases, né? Aquelas tão honestas que a gente até escuta o personagem falar: "E tirou a porra de uma arma da porra da pasta!" aí todos vão embora, entram no ônibus que arrancou rapidinho, embora seja o ônibus que arrancou rapidinho, este rapidinho me pareceu cruel, é como se no fundo estivesse falando das pessoas, ninguém ajuda, todo mundo se manda, sem olhar para trás. Mas um desconhecido paga o táxi para o hospital, quem? quem? o filho? este detalhe e a história com o filho não ficou muito clara para mim, é proposital? ou fui eu que não peguei?
Praia da Estação, ótimo! é hoje! é a gente! é a manifestação! é o Emerson, que toca saxofone na calçada do Conjunto Nacional, mesmo depois do dono da Livraria Cultura, veja bem, o dono de uma livraria, tentar proibi-lo de tocar ali. Ah! Serve até como um impulso, "Revolução não é só uma palavra".
Ah, e a Dorinha, talvez seja o meu preferido, eu senti uma ternura triste, já tinha sentido algo parecido com o Guimarães Rosa. O texto todo é muito bonito, e o final, putz, o final: "De uns tempos para cá, deu para cantar modinhas antigas para me ninar. Muitas falam de amor e generosidade (!!!). Eu tento não esquecer". Sérgio, parece até uma música, um adágio, que dá aquela sensação de nostalgia, de saudade antiga, de algo lindamente triste.
E só no inferno - a salvação. aham!
E a Maria, uma poesia, repleta de imagens lindas, "Maria, de duvidar da minha existência, da minha passagem por sua vida, um gato preto que cruzou a sua estrada de flores coloridas (!), pessoas simpáticas e espirituais, luz e todos esses passos suaves que a humanidade deveria dar." "Como testemunhas os sinos mudos da igreja (!)". "Como se em meu coração brilhassem apenas brocais descolados de uma fantasia de Carnaval (!!!)". Aquele trecho no qual ele conta como a Maria de ninguém, de uma pessoa séria, de roupas e ares caretas se transformou no seu amor, quando lhe disse: "Você sorri bonito", é muito, mas muito lindo, é isso, né? às vezes um gesto, uma frase, muda tudo, anuncia a paixão.
Bom, Coisotini, é mais ou menos isso, poderia falar mais, mas este e-mail já ficou longo e certamente alguns detalhes me escaparam, sempre escapam, acabei citando os textos que mais me marcaram, que mais mexeram comigo. Parabéns pelo livro, pela tua dedicação, é muito claro como você trabalha em cima do texto, se importa com a construção, a lapidação, a concisão, enfim, como é a tua praia mesmo a literatura.
Só mais um detalhe, você sabe como sou chegada numa metafísica, na verdade, numa mistura entre o transcendente e o humano (perdoe as duas palavras tão desgastadas, mas é isso), por tal motivo gosto tanto da Hilda e gostei tanto do Campos de Carvalho, literatura que permanece apenas no uísque, no jazz e no homem largado por uma mulher não me fisga, mas isso já é gosto pessoal. O curioso é que a tua literatura não é nem uma e nem outra, fica entre as duas. Ah, Coiso Coiso, gostei demais!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

POETA LUIS OLAVO FONTES

   Antes de começar este comentário, fui buscar foto do poeta na web; achei uma ótima entrevista feita por Masé Lemos em 2009 para a "Z Cultural". Em alguns minutos de leitura, fiquei sabendo mais sobre o LOF que em todos esses anos em que conheço sua poesia - e que nos últimos cinco dias, quando li a coletânea Papéis de viagem (editora Seis, 1993), que reúne sua produção poética de 1973 a 1981.
   (Por uma ótima coincidência, estou ouvindo pela primeira vez a banda Bubble Puppy, um álbum de 1969.)
   No início dos anos 1980, recebi, certamente por indicação da Leila Míccolis, dois livros do carioca Luis Olavo Fontes: Papéis de viagem e Tudo pelos ares. Gostei do que li e continuei gostando até hoje; guardo meus exemplares com carinho e, volta e meia, releio-os com o mesmo prazer de sempre.
   Num momento inicial da leitura da coletânea, no ônibus subindo a rua da Bahia, manhã de sol e sexta, me perguntei por que essa poesia ainda me encanta, mesmo que o leitor exigente de hoje, com vinte anos a mais de experiência, perceba nela alguns cacos/vícios/desleixos. A resposta veio um quarteirão depois (acima da Afonso Pena): empatia.
   Sem cair na besteira de me incomodar tentando analisar a poesia do Luis, me dei conta de que ela é/reflete muitas das coisas de que gosto, dentro e fora da literatura: ritmo, rock'n'roll, leveza, velocidade, achados, filosofadas, beleza, imagens surpreendentes, viagens... e, muito muito especialmente, um grande amor pelo ser humano e pelo planeta.
   Terminei agora há pouco o livrão que juntou doze livros dos anos 1970. Semana que vem vou relê-lo marcando meus poemas preferidos. E em algum momento, depois, vou criar uma situação para dizê-los em voz alta.
  
   

terça-feira, 1 de outubro de 2013

ALEXANDRE BRANDÃO

De enfiadinha

Dia desses, no Facebook, falei uma mentira. Disse que, desde que lera e relera no mesmo instante um livro de Nabokov (Machenka, Companhia das Letras), só agora, ao ler “O que deu pra fazer em matéria de história de amor” (Companhia das Letras), de Elvira Vigna, voltara a ter experiência similar. Na realidade, essa de dar duas leituras assim de enfiadinha havia me ocorrido um pouco antes com livros de dois amigos meus. Um do conterrâneo Alexandre Marino (Exília, Dobra Editorial) e o outro do também mineiro Sérgio Fantini (Novella, Jovens Escribas).
Foto de Alexandre Brandão.

O que leva um sujeito a ler duas vezes em seguida um mesmo livro? Ou encanto ou assombro. Encantado, é impossível abandonar o livro. Assombrado, é imperativo voltar a ele para, de fato, compreendê-lo ou decifrá-lo — e ser, enfim, devorado por ele.
A releitura de Nabokov esteve ligada à questão do assombro — li e reli, confesso, por não entendê-lo na primeira leitura. Se não estou enganado, já que busco na memória algo acontecido há muitos anos, não é um livro fácil. Do mesmo Nabokov, é melhor ler “Lolita” (Alfaguara Brasil).
Nos casos de Fantini e Vigna, a questão tem a ver com o encantamento, mas, como escritor, a releitura foi também um golpe baixo, quer dizer, tentei decifrar, na segunda visita, os truques dos nobres colegas. Fantini, por exemplo, é dono de um texto enxuto, mas de um enxuto comparável ao sujeito magro de nascença, daqueles (não sou eu, mas foi meu pai) que passam a vida sem saber o que é gordura. Assim, meu amigo de Belo Horizonte, ainda que trabalhe muito para ter o texto pronto e seco, não deixa vestígios de seu bisturi no que escreve. Seus contos estão de um jeito que parecem ter sido desde o nascimento. Assim especialmente nesse “Novella”, livro de narrativas curtas, que flertam com a poesia.
Já Vigna nos conta uma história que a própria personagem e narradora conhece, digamos, de ouvir falar. Isso não seria nada surpreendente se ela não se agarrasse àquela história como forma (quase) única de estruturar a própria vida. Ela relata a vida de seus sogros, se é que os pais de um parceiro com quem vive e deixa de viver com certa frequência podem ser chamados de sogros. Bem, ao narrar e confrontar-se com a história contada, a personagem (sem nome) vai fazendo o que dá em matéria de história de amor com seu homem, que talvez não seja filho do pai dele e que é pai, sem saber, do filho dela. Vale situar o período histórico da narrativa, pois, me parece, ele é fundamental: começa, no período da Segunda Guerra, com a migração de uma família judia, a do sogro, da Alemanha para o Brasil, passa pelo período da ditadura militar e desemboca nalgum momento mais recente, no qual, por exemplo, a AIDS já tinha dado a sua cara e feito suas primeiras vítimas. Seja como for, para quem associa literatura feminina a Clarice Lispector, um conselho: interne-se numa clínica e desintoxique-se antes de ler Vigna. O feminino são muitos, destaco e teclo sem motivo aparente o óbvio.
Resta meu xará, Alexandre Marino, dono de uma poesia que me encanta e me assombra. Para falar dele (ou da própria poesia), tenho de confessar uma idiossincrasia: nunca dou por terminada a leitura de um livro de poemas. Se me perguntam se já li um livro qualquer de poesia, mesmo que já o tenha lido, respondo que não, que não li, que estou lendo. Por que tamanha sandice? Ora, porque os livros de poesia são como a Bíblia ou o Alcorão, leitura para a vida inteira, portanto interminável. Se agora eu confesso que li e reli o Exília de enfiadinha estou apenas anunciando o início do embate. Voltarei ao livro, hoje ou amanhã, ou hoje e amanhã, para reencontrar “Os pássaros de Bagdá”, poema que diz que “ninguém pensou nos pássaros de Bagdá,/desafios canoros/que os ditadores ignoram”. Antes do poema estive entre os que não pensaram nos pássaros — nem nas baratas, nem nas árvores que velam os generais mortos em combate.

domingo, 29 de setembro de 2013

SSÓ SOBRE NOVELLA + COMENTÁRIOS DO SUL21

Data:24/jul/2013, 8h20min

Escritor fora dos eixos e fora do eixo

Sérgio Fantini disse, numa entrevista recente, que o eixo Rio-São Paulo é como assombração, só vê quem acredita. É vero? Vejamos.
Em 2001 ou 2002, me cantaram pra escrever uma matéria sobre os novos escritores pra revista Vox, editada nos tempos do governo Olívio Dutra. Li uns oitenta livros, o que é pouco, sei, muita gente ficou de fora, como a Índigo ou o Roberto Luiz Guedes, digamos, pra citar dois sem ter de pesquisar. Exceto uma meia dúzia aqui do sul, o resto era do Rio de Janeiro e de São Paulo, principalmente de São Paulo. Acabei não escrevendo a matéria por dois bons motivos: o primeiro, minha incompetência jornalística e crítica; segundo, minha covardia. Sabem o que é falar mal de uns setenta livros numa pegada só? Se fossem de autores mortos, com herdeiros morando longe, vá lá. Ou se eu soubesse encher dez páginas sem dizer nada, como tantos acadêmicos e críticos profissionais.
Entre os oito ou dez autores que me interessaram, poucos se tornaram conhecidos nos anos seguintes, como Marçal Aquino, Amilcar Bêttega, Michel Laub e Sérgio Rodrigues. Às vezes vejo alguma referência a Cadão Volpato ou Claudio Galparin, mas nada que os bote no mapa. Bueno, como Miss Danúbio e O amor e outros objetos pontiagudos me pegaram de jeito, escrevi pro Marçal pra saber se tinha outros livros. Não tinha, na época, mas me perguntou se eu conhecia o Sérgio Fantini. Eu não conhecia, o que não é estranho, porque o Fantini mora em Belo Horizonte e publicou tudo por conta própria ou com editoras pequenas. Se a distribuição das grandes editoras já é um negócio complicado, imagina a de edições independentes. Daí o Marçal falou com o Fantini e um belo dia recebi Materiaes (Edições Dubolso, 2000). Foi assim que, sem me deixar ofuscar pelas assombrações de praxe — selos prestigiosos, jornais de grande circulação —, descobri um escritor e ganhei um amigo.
FANTINI-1 001Materiaes
O livro é três em um: Diz xisSuíte Bar e Rugas.
Diz xis é uma novelinha com sexo, drogas & rock and roll, texto ágil e seco. Tem um arzinho autobiográfico, mas não dá pra confiar. Fantini é do tipo que viveu de tudo, pode se colocar em qualquer papel e é craque naquilo que uma personagem do Nabokov censura nos escritores: juntar pedaços de gente e de fatos e nos dar uma bela almôndega. Ele nunca descreve o personagem, Silas, que vai se revelando pra gente aos poucos, sem ênfase. Isso, sabe-se, não é pra qualquer um. Há ainda uma atmosfera sinistra, parece que basta apurar o ouvido pra distinguir a trombeta do anjo vingador em meio à cantoria e ao batuque do carnaval.
Suíte Bar. Contos sem títulos, como se fossem capítulos de uma novela. Como dizia o humorista argentino Roberto Fontanarrosa, livro de contos é como CD: tem dois temas fortes e o resto é enchimento. Não aqui. A clientela desse bar é seleta. Contos curtos, em que acontece quase nada, só um cara bebendo sentado num canto, gente passando, coisas assim. Mas está tudo ali: a pessoa, a atmosfera, o desencanto, o bar, a noite ou o dia.
Fantini ainda tem umas bossas narrativas, às vezes, mas sempre divertidas, coisa abençoada, já que muita gente boa confunde vanguarda com encher o saco do leitor. Um exemplo curtinho: “Que o homossexual conhecido como Deínha brincou o carnaval Que ele se fantasiou de mulher Que sua fantasia era uma longa saia rodada com lantejoulas e brocal Que as lantejoulas e o brocal formavam desenhos lindos Que sua fantasia era também uma camisa de seda branca”.
Rugas. Novelinha mais premeditada, sem as andanças de Diz xis, com um texto exato e igual. Várias versões de uma mesma cena: um homem bebe, se atrasa pra um encontro, a mulher prepara a janta romântica. Às vezes transam. Mas nunca é muito satisfatório. Sei, esse resumo é injusto. Fantini não fala da sensação de agonia de um homem se debatendo com o cotidiano. A novelinha é essa sensação, capisci? E de um modo inescapável. Se em Diz xis, o anjo vingador estava na rua com sua trombeta, agora já foi embora, o mundo acabou e nossa memória, a um segundo do sono, tenta lembrá-lo, a agulha arranhando nos mesmos lugares.
FANTINI-2 001A ponto de explodir
Em 2008, Fantini reuniu os contos desse volume, numa edição independente. Releia minha frase e fique um minuto em silêncio. É ou não é a sentença de morte de um escritor? Contos, nos garantem, são pouco lidos. Edição independente? Vade retro, Satanás.
Sabe o que fiz agora mesmo? Pedi no Google uma lista dos cinquenta melhores livros brasileiros publicados em 2008. Você viu nela A ponto de explodir? Nem eu. Mas vi vários empulhadores, tipo João Gilberto Noll e Nuno Ramos. Pelo menos lá estavam Dalton Trevisan e Luiz Vilela. E uma das melhores promessas dos últimos anos: Vanessa Bárbara.
Nesse livro, o texto de Fantini se soltou de vez. Seguimos as frases sem esforço nenhum, sem nem nos darmos conta. Está mais coloquial e continua não dando mole pra literatura. Na melhor tradição americana, Fantini chega às emoções e aos pensamentos de um modo indireto, pelos detalhes do ambiente, pelos gestos. Tem uma fala mansa, nunca pretensiosa, nunca obscura, nunca visando o aplauso da galera. Isso no fundo é um perigo: muito leitor apressadinho pode não se dar conta de com quem está se metendo.
Ainda bem que a pequena editora Jovens Escribas — ora veja, de Natal, RN, mais fora do eixo impossível — vai reeditar este ano ainda A ponto de explodir. Edição revista e diminuída, pelo que sei. Essa mesma editora publicou, em 2011, Silas, uma reunião de todos os contos em que aparecia o personagem Silas, inclusive Diz xis. Destaque pro inédito “Silas, 30 do 20 tempo”. Só esse conto vale o ingresso.
FANTINI-3 001Novella
A Jovens Escribas, que não dorme de touca e publica vários velhos escribas, lançou há poucoNovella. Quem quiser saber por que o título em italiano que compre o livro. A leveza, a rapidez e a naturalidade de Fantini parecem ter aumentado ainda mais. Assim, o perigo de desorientar os leitores do Enem é maior. Logo abaixo, a prova dos noves, um conto bem curto, pra não assustar ninguém.
Em “Muito silêncio (por nada)”, Fantini retoma a forma de Rugas: versões e mais versões de uma cena. Agora é o primeiro encontro de um casal. Fora os chutes no saco dos românticos, é preciso notar a absoluta maleabilidade do texto e das tramas, fundo e forma sendo uma coisa só, como deve ser. Nunca se nota esforço nenhum, mesmo depois de cem metros rasos lomba acima. É o cantor lírico dando uma de João Gilberto, me entende?
Lalona
de Sérgio Fantini
Todo mundo comeu Lalona.
Até Obira comeu, o mais surpreendente: magro, cambota e barrigudo; falhas doentias de cabelo na cabeça grande demais pro corpo miúdo; sempre tossindo e fumando; calado e meio gago; roupas velhas, mas limpas e sem vida; e chato, nossa, como Obira é chato – eu sei que ele, além de invejar Dulindo, também comeu Lalona.
O Pata. Não era de se esperar, mas também. Foi quando cheirou pela primeira vez. Estava falando mais que o normal e ele fala muito, muito mesmo, mais que rico ao sol, como dizia Nabor. Fala pelos cotovelos, pelos joelhos, pelos pés; com as mãos, os olhos, a cabeça; putz, imagine, o Pata, que odeia Tomazinho.
Dulindo é brincadeira. Esse come todas e mais algumas e, vá saber, mais alguns. Boa pinta como é, metido a gostoso e, ok: o cara tem um baita charme; sempre bem aparado; fala mansa e conveniente e aquele sorriso bobo; piadinhas ao gosto do freguês; bronzeado até no inverno; gentil, cortês, disposto. Dulindo era bola certa, apesar de ser doidinho pela Mulher Vulgar.
Acho que Teodolito seria o menos provável, nunca ninguém pensaria isso dele, por ser casado e trazer uma placa na testa: sou fiel. Mas, ah, alguém deve ter visto os dois saindo do motel onde ela sempre leva seus cachos. Então, é claro que o gringo sem comunicação com o mundo exterior ao da maconha também foi, quem diria, sem sal daquele jeito, bestão, é, quem diria, mesmo tendo dívidas enormes com o Pata.
O mais surpreendente mesmo foi saber da Mulher Vulgar, que não rejeita nada que possa lhe dar prazer, todo tipo de prazer, seres vivos e objetos de qualquer gênero, cor, idade ou tamanho. É que Lalona sempre me pareceu hétero convicta. Bom, mas enfim, quem pode entender o coração de uma mulher? E de duas, então? O certo é que a Mulher Vulgar, rejeitada três vezes por Obira, também desfrutou do corpo de Lalona.
Tomazinho, puxa, até ele. Certa noite, depois de baixar metade da porta, recebeu a visita inesperada. E ali mesmo, no chão encardido, entre as mesas ainda por arrumar, se serviram um do outro até quase de manhãzinha, apesar dele saber que eu existo.
Bom, eu também comi Lalona. Comi e ainda como, ela exige, diz que casou por amor. Eu acredito.
Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.

8 comentários para “Escritor fora dos eixos e fora do eixo”

  1. Flavia disse:
    No conto do corno manso, a descoberta, no final, arremata o leitor com risadinhas de estupefação. Fiquei com vontade de ler mais!
  2. Caminhante disse:
    Conto de causar inveja. Um mestre realmente.
  3. Ernani Ssó disse:
    Flávia, Caminhante, vocês de novo, que bom. Um conselho: deem uma espiada no site da Jovens Escribas pra ver como comprar os livros do Fantini. Não esqueçam, A ponto de explodir sai logo, logo, com um punhado de contos com o pavio queimando nos últimos segundos. Uma coisa que esqueci: Silas vai ser lançado no México. Não é uma vergonha? O livro vai ser traduzido lá e nós, aqui mesmo em Pindorama, temos de fazer uma ginástica pra achar o dito cujo.
  4. charlles campos disse:
    Tá bom Ernani. Nunca tinha ouvido falar desse autor, e a crônica que você colocou dele aí é engraçadinha. Aqui em Goiás proliferam escritores como ele, assim como em qualquer outro estado brasileiro. Uns tempos atrás, misturaram as coisas e em um artigo da Veja, do Pompeu de Toledo (acho que se chamava, para maior escarcéu: “Há vida inteligente em Goiás”), falou-se de uma autora regional, especificamente de seu livro de contos, “A friagem”.
    Então, não vejo a condição de underground desses autores como uma vitimização. Eles são pequenos, despretensiosos, ligeiros, leves (como você ressalta), com o propósito de não ofenderem ninguém. São uma espécie de tios inofensivos que nas ceias comemorativas soltam lá as suas piadas, recebem elogios de genialidade e depois retornam à condição de peças de entretenimento familiar esporádica. Ou seja, retornando a um comentário seu passado, sobre a falta de uma crítica contundente em nosso país, que não seja panelista nem de simpatias mútuas, esses autores estão muito bem onde estão, e tem a valorização que merecem. Sua inofensibilidade é a cara da literatura brasileira.
    O dia que aparecer um escritor complicado, caudaloso, irreverente mas vaidoso e ególatra o suficiente para almejar ou o esquecimento ou a certeza de não ser um pastel de padaria, aí sim vou achar a maior das injustiças contra um autor nacional. Um cara cuja escrita não se possa atribuir termos como “fácil”, “leveza”, ou para ser entendido pelo enem.
  5. Ernani Ssó disse:
    Confesso que tenho receio de autores complicados. Daí meu amor por autores leves e fáceis como Stevenson, Stendhal, Greene, Svevo, Cervantes, Mark Twain, Simenon, Turguinev, Gogol – a lista é longa, na verdade. Mas eu entendo direitinho o que você está dizendo. Só acho que não se aplica ao Fantini. Tem outra: ele não tá nem aí pra esse negócio de vítima.
  6. charlles campos disse:
    Svevo, Stendhal e Cervantes não tem nada de fáceis. Leitura sofisticada, deliciosa e de primeira. E o Simenon de Sangue na neve e O homem que via o trem passar é o tipo de leitura que poderia provocar um aneurisma cerebral nos tenros cerebrozinhos do Enem.
    Eu só queria que os escritores nacionais tivessem ao mesmo a petulância do Paulo Coelho e não se intimidassem diante Joyce. Para o bem ou para o mal.
  7. Ernani Ssó disse:
    Estou sendo irônico, de leve. Gosto dos autores que dissimulam a dificuldade, que podem ser lidos até como aventura ou comédia apenas. Os que fazem da dificuldade um cartão de visita, tipo Lacan, têm meu total desprezo. No fundo quase nunca sabem do que estão falando, ou não foi o Lacan que disse que a raiz quadrada de 0, 1 é o pênis? Ou algo assim.
  8. charlles campos disse:
    Aí você está apelando. Não há nada mais ruim que Lacan. Quando digo sobre complicações é a escrita de Pynchon, Roth, Rosa, Saramago, que na verdade são “complicações” para um simplicismo do gosto. Acabo de ler o mais simples de todos os escritores, Beckett, especificamente “Esperando Godot”, e que profundidade e amplos campos de interpretação_ e que humor também.