domingo, 29 de setembro de 2013

SSÓ SOBRE NOVELLA + COMENTÁRIOS DO SUL21

Data:24/jul/2013, 8h20min

Escritor fora dos eixos e fora do eixo

Sérgio Fantini disse, numa entrevista recente, que o eixo Rio-São Paulo é como assombração, só vê quem acredita. É vero? Vejamos.
Em 2001 ou 2002, me cantaram pra escrever uma matéria sobre os novos escritores pra revista Vox, editada nos tempos do governo Olívio Dutra. Li uns oitenta livros, o que é pouco, sei, muita gente ficou de fora, como a Índigo ou o Roberto Luiz Guedes, digamos, pra citar dois sem ter de pesquisar. Exceto uma meia dúzia aqui do sul, o resto era do Rio de Janeiro e de São Paulo, principalmente de São Paulo. Acabei não escrevendo a matéria por dois bons motivos: o primeiro, minha incompetência jornalística e crítica; segundo, minha covardia. Sabem o que é falar mal de uns setenta livros numa pegada só? Se fossem de autores mortos, com herdeiros morando longe, vá lá. Ou se eu soubesse encher dez páginas sem dizer nada, como tantos acadêmicos e críticos profissionais.
Entre os oito ou dez autores que me interessaram, poucos se tornaram conhecidos nos anos seguintes, como Marçal Aquino, Amilcar Bêttega, Michel Laub e Sérgio Rodrigues. Às vezes vejo alguma referência a Cadão Volpato ou Claudio Galparin, mas nada que os bote no mapa. Bueno, como Miss Danúbio e O amor e outros objetos pontiagudos me pegaram de jeito, escrevi pro Marçal pra saber se tinha outros livros. Não tinha, na época, mas me perguntou se eu conhecia o Sérgio Fantini. Eu não conhecia, o que não é estranho, porque o Fantini mora em Belo Horizonte e publicou tudo por conta própria ou com editoras pequenas. Se a distribuição das grandes editoras já é um negócio complicado, imagina a de edições independentes. Daí o Marçal falou com o Fantini e um belo dia recebi Materiaes (Edições Dubolso, 2000). Foi assim que, sem me deixar ofuscar pelas assombrações de praxe — selos prestigiosos, jornais de grande circulação —, descobri um escritor e ganhei um amigo.
FANTINI-1 001Materiaes
O livro é três em um: Diz xisSuíte Bar e Rugas.
Diz xis é uma novelinha com sexo, drogas & rock and roll, texto ágil e seco. Tem um arzinho autobiográfico, mas não dá pra confiar. Fantini é do tipo que viveu de tudo, pode se colocar em qualquer papel e é craque naquilo que uma personagem do Nabokov censura nos escritores: juntar pedaços de gente e de fatos e nos dar uma bela almôndega. Ele nunca descreve o personagem, Silas, que vai se revelando pra gente aos poucos, sem ênfase. Isso, sabe-se, não é pra qualquer um. Há ainda uma atmosfera sinistra, parece que basta apurar o ouvido pra distinguir a trombeta do anjo vingador em meio à cantoria e ao batuque do carnaval.
Suíte Bar. Contos sem títulos, como se fossem capítulos de uma novela. Como dizia o humorista argentino Roberto Fontanarrosa, livro de contos é como CD: tem dois temas fortes e o resto é enchimento. Não aqui. A clientela desse bar é seleta. Contos curtos, em que acontece quase nada, só um cara bebendo sentado num canto, gente passando, coisas assim. Mas está tudo ali: a pessoa, a atmosfera, o desencanto, o bar, a noite ou o dia.
Fantini ainda tem umas bossas narrativas, às vezes, mas sempre divertidas, coisa abençoada, já que muita gente boa confunde vanguarda com encher o saco do leitor. Um exemplo curtinho: “Que o homossexual conhecido como Deínha brincou o carnaval Que ele se fantasiou de mulher Que sua fantasia era uma longa saia rodada com lantejoulas e brocal Que as lantejoulas e o brocal formavam desenhos lindos Que sua fantasia era também uma camisa de seda branca”.
Rugas. Novelinha mais premeditada, sem as andanças de Diz xis, com um texto exato e igual. Várias versões de uma mesma cena: um homem bebe, se atrasa pra um encontro, a mulher prepara a janta romântica. Às vezes transam. Mas nunca é muito satisfatório. Sei, esse resumo é injusto. Fantini não fala da sensação de agonia de um homem se debatendo com o cotidiano. A novelinha é essa sensação, capisci? E de um modo inescapável. Se em Diz xis, o anjo vingador estava na rua com sua trombeta, agora já foi embora, o mundo acabou e nossa memória, a um segundo do sono, tenta lembrá-lo, a agulha arranhando nos mesmos lugares.
FANTINI-2 001A ponto de explodir
Em 2008, Fantini reuniu os contos desse volume, numa edição independente. Releia minha frase e fique um minuto em silêncio. É ou não é a sentença de morte de um escritor? Contos, nos garantem, são pouco lidos. Edição independente? Vade retro, Satanás.
Sabe o que fiz agora mesmo? Pedi no Google uma lista dos cinquenta melhores livros brasileiros publicados em 2008. Você viu nela A ponto de explodir? Nem eu. Mas vi vários empulhadores, tipo João Gilberto Noll e Nuno Ramos. Pelo menos lá estavam Dalton Trevisan e Luiz Vilela. E uma das melhores promessas dos últimos anos: Vanessa Bárbara.
Nesse livro, o texto de Fantini se soltou de vez. Seguimos as frases sem esforço nenhum, sem nem nos darmos conta. Está mais coloquial e continua não dando mole pra literatura. Na melhor tradição americana, Fantini chega às emoções e aos pensamentos de um modo indireto, pelos detalhes do ambiente, pelos gestos. Tem uma fala mansa, nunca pretensiosa, nunca obscura, nunca visando o aplauso da galera. Isso no fundo é um perigo: muito leitor apressadinho pode não se dar conta de com quem está se metendo.
Ainda bem que a pequena editora Jovens Escribas — ora veja, de Natal, RN, mais fora do eixo impossível — vai reeditar este ano ainda A ponto de explodir. Edição revista e diminuída, pelo que sei. Essa mesma editora publicou, em 2011, Silas, uma reunião de todos os contos em que aparecia o personagem Silas, inclusive Diz xis. Destaque pro inédito “Silas, 30 do 20 tempo”. Só esse conto vale o ingresso.
FANTINI-3 001Novella
A Jovens Escribas, que não dorme de touca e publica vários velhos escribas, lançou há poucoNovella. Quem quiser saber por que o título em italiano que compre o livro. A leveza, a rapidez e a naturalidade de Fantini parecem ter aumentado ainda mais. Assim, o perigo de desorientar os leitores do Enem é maior. Logo abaixo, a prova dos noves, um conto bem curto, pra não assustar ninguém.
Em “Muito silêncio (por nada)”, Fantini retoma a forma de Rugas: versões e mais versões de uma cena. Agora é o primeiro encontro de um casal. Fora os chutes no saco dos românticos, é preciso notar a absoluta maleabilidade do texto e das tramas, fundo e forma sendo uma coisa só, como deve ser. Nunca se nota esforço nenhum, mesmo depois de cem metros rasos lomba acima. É o cantor lírico dando uma de João Gilberto, me entende?
Lalona
de Sérgio Fantini
Todo mundo comeu Lalona.
Até Obira comeu, o mais surpreendente: magro, cambota e barrigudo; falhas doentias de cabelo na cabeça grande demais pro corpo miúdo; sempre tossindo e fumando; calado e meio gago; roupas velhas, mas limpas e sem vida; e chato, nossa, como Obira é chato – eu sei que ele, além de invejar Dulindo, também comeu Lalona.
O Pata. Não era de se esperar, mas também. Foi quando cheirou pela primeira vez. Estava falando mais que o normal e ele fala muito, muito mesmo, mais que rico ao sol, como dizia Nabor. Fala pelos cotovelos, pelos joelhos, pelos pés; com as mãos, os olhos, a cabeça; putz, imagine, o Pata, que odeia Tomazinho.
Dulindo é brincadeira. Esse come todas e mais algumas e, vá saber, mais alguns. Boa pinta como é, metido a gostoso e, ok: o cara tem um baita charme; sempre bem aparado; fala mansa e conveniente e aquele sorriso bobo; piadinhas ao gosto do freguês; bronzeado até no inverno; gentil, cortês, disposto. Dulindo era bola certa, apesar de ser doidinho pela Mulher Vulgar.
Acho que Teodolito seria o menos provável, nunca ninguém pensaria isso dele, por ser casado e trazer uma placa na testa: sou fiel. Mas, ah, alguém deve ter visto os dois saindo do motel onde ela sempre leva seus cachos. Então, é claro que o gringo sem comunicação com o mundo exterior ao da maconha também foi, quem diria, sem sal daquele jeito, bestão, é, quem diria, mesmo tendo dívidas enormes com o Pata.
O mais surpreendente mesmo foi saber da Mulher Vulgar, que não rejeita nada que possa lhe dar prazer, todo tipo de prazer, seres vivos e objetos de qualquer gênero, cor, idade ou tamanho. É que Lalona sempre me pareceu hétero convicta. Bom, mas enfim, quem pode entender o coração de uma mulher? E de duas, então? O certo é que a Mulher Vulgar, rejeitada três vezes por Obira, também desfrutou do corpo de Lalona.
Tomazinho, puxa, até ele. Certa noite, depois de baixar metade da porta, recebeu a visita inesperada. E ali mesmo, no chão encardido, entre as mesas ainda por arrumar, se serviram um do outro até quase de manhãzinha, apesar dele saber que eu existo.
Bom, eu também comi Lalona. Comi e ainda como, ela exige, diz que casou por amor. Eu acredito.
Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.

8 comentários para “Escritor fora dos eixos e fora do eixo”

  1. Flavia disse:
    No conto do corno manso, a descoberta, no final, arremata o leitor com risadinhas de estupefação. Fiquei com vontade de ler mais!
  2. Caminhante disse:
    Conto de causar inveja. Um mestre realmente.
  3. Ernani Ssó disse:
    Flávia, Caminhante, vocês de novo, que bom. Um conselho: deem uma espiada no site da Jovens Escribas pra ver como comprar os livros do Fantini. Não esqueçam, A ponto de explodir sai logo, logo, com um punhado de contos com o pavio queimando nos últimos segundos. Uma coisa que esqueci: Silas vai ser lançado no México. Não é uma vergonha? O livro vai ser traduzido lá e nós, aqui mesmo em Pindorama, temos de fazer uma ginástica pra achar o dito cujo.
  4. charlles campos disse:
    Tá bom Ernani. Nunca tinha ouvido falar desse autor, e a crônica que você colocou dele aí é engraçadinha. Aqui em Goiás proliferam escritores como ele, assim como em qualquer outro estado brasileiro. Uns tempos atrás, misturaram as coisas e em um artigo da Veja, do Pompeu de Toledo (acho que se chamava, para maior escarcéu: “Há vida inteligente em Goiás”), falou-se de uma autora regional, especificamente de seu livro de contos, “A friagem”.
    Então, não vejo a condição de underground desses autores como uma vitimização. Eles são pequenos, despretensiosos, ligeiros, leves (como você ressalta), com o propósito de não ofenderem ninguém. São uma espécie de tios inofensivos que nas ceias comemorativas soltam lá as suas piadas, recebem elogios de genialidade e depois retornam à condição de peças de entretenimento familiar esporádica. Ou seja, retornando a um comentário seu passado, sobre a falta de uma crítica contundente em nosso país, que não seja panelista nem de simpatias mútuas, esses autores estão muito bem onde estão, e tem a valorização que merecem. Sua inofensibilidade é a cara da literatura brasileira.
    O dia que aparecer um escritor complicado, caudaloso, irreverente mas vaidoso e ególatra o suficiente para almejar ou o esquecimento ou a certeza de não ser um pastel de padaria, aí sim vou achar a maior das injustiças contra um autor nacional. Um cara cuja escrita não se possa atribuir termos como “fácil”, “leveza”, ou para ser entendido pelo enem.
  5. Ernani Ssó disse:
    Confesso que tenho receio de autores complicados. Daí meu amor por autores leves e fáceis como Stevenson, Stendhal, Greene, Svevo, Cervantes, Mark Twain, Simenon, Turguinev, Gogol – a lista é longa, na verdade. Mas eu entendo direitinho o que você está dizendo. Só acho que não se aplica ao Fantini. Tem outra: ele não tá nem aí pra esse negócio de vítima.
  6. charlles campos disse:
    Svevo, Stendhal e Cervantes não tem nada de fáceis. Leitura sofisticada, deliciosa e de primeira. E o Simenon de Sangue na neve e O homem que via o trem passar é o tipo de leitura que poderia provocar um aneurisma cerebral nos tenros cerebrozinhos do Enem.
    Eu só queria que os escritores nacionais tivessem ao mesmo a petulância do Paulo Coelho e não se intimidassem diante Joyce. Para o bem ou para o mal.
  7. Ernani Ssó disse:
    Estou sendo irônico, de leve. Gosto dos autores que dissimulam a dificuldade, que podem ser lidos até como aventura ou comédia apenas. Os que fazem da dificuldade um cartão de visita, tipo Lacan, têm meu total desprezo. No fundo quase nunca sabem do que estão falando, ou não foi o Lacan que disse que a raiz quadrada de 0, 1 é o pênis? Ou algo assim.
  8. charlles campos disse:
    Aí você está apelando. Não há nada mais ruim que Lacan. Quando digo sobre complicações é a escrita de Pynchon, Roth, Rosa, Saramago, que na verdade são “complicações” para um simplicismo do gosto. Acabo de ler o mais simples de todos os escritores, Beckett, especificamente “Esperando Godot”, e que profundidade e amplos campos de interpretação_ e que humor também.

ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE NOVELLA:

PAULO BENTANCUR:
Contos que dialogam uns com os outros. Contos escritos quase a carvão, numa prosa sem derramamentos mas dotada de um lirismo sem contemplação. Poeta da prosa. Novelista fragmentado em capítulos isolados e sem aparente comunicação. Terminado o livro, percebemos que lemos uma coisa só. Caleidoscopicamente. Um feito!
...
O livro do Fantini é bom sobretudo pela linguagem. O Fantini escreve como um antiliterato. Literatura pau a pau com a vida. Mais o humor negro. Mais as inusitadas relações entre as personagens, algumas, puramente imaginárias mas... tão convincentes! Em geral, é isso: a gente fala do livro do autor e a crítica é só um acidente. Neste caso, porém, há uma grande surpresa. A análise que Adriane faz é fantástica. E não me entusiasmou menos que o livro. Um raro caso em que o crítico não é um subproduto da obra criticada. Prova de que seu blog, Adriane, é dos mais interessantes de se visitar. Está de parabéns mesmo. E a literatura é quem agradece. O leitor, finalmente, com um guia confiável.


ELOÉSIO PAULO:
Serginho, li hoje de uma sentada seu "Novella" (tirando o comecinho, que li aí em BH) e gostei muito.
Para começar, a edição é uma beleza e sempre fico com inveja disso.
Nem sabia que o Marçal tinha esses talentos de desenhista, ficou muito bem casada a arte da capa.
Dos contos, pode-se dizer que é o Fantini de sempre, né?
Seu domínio da técnica está muito apurado, e por isso mesmo a citação do Calvino faz muito sentido.
Gostei principalmente de "um amigo de Deus" (por razões óbvias) e "Muito silêncio (por nada)", Fiquei até com vontade de conhecer o livro do Reinado.


LINALDO GUEDES:
O autor mineiro lançou recentemente em João Pessoa essa seleção de contos, onde mostra sua capacidade engenhosa para criar estórias e histórias que envolvem o leitor desde a primeira linha. Gostei particularmente de "Lalona" e "Bons motivos para se matar".
Fantini é um autor que busca inventar a coisa que mais interessa ao leitor: uma boa trama, com personagens do cotidiano que surpreendem com um nonsense que só os escritores talentosos sabem criar.

MARIA MARTA DO CARMO:
Ontem na "Feira do Livro" tive a grata oportunidade de encontrar diversos conhecidos e amigos. Dentre estes últimos destaco minha amiga e ex-colega de escola Mônica Ribeiro Rocha Guimarães, de quem sinto muita falta, minha querida Fabricia Sousa, amiga de todas as horas e o escritor Sérgio Fantini, a quem conheci alguns anos atrás no Rio de Janeiro e que voltei a rever, agora, com grande alegria. Estou lendo o livro que ele acaba de lançar em João Pessoa: "Novella". Texto ágil, seco e preciso. Escrita lacunada, cheia de buracos e incompletudes por onde a imaginação escapa. E, no entanto, o texto te prende de forma impressionante. Sinto que o autor, em cada um e em todos os seus textos, fala de um submundo que está muito próximo de nós. Pra não dizer "dentro de nós". Pra quem gosta de literatura de qualidade, é uma ótima pedida.

BÁRBARA LUIZA VALENÇA:
Fantini, foi muito bom ter ido ao lançamento de Novella. O livro é ótimo, era um misto de tudo o que eu queria ler!! Espero poder adquirir seus outros livros o mais rapidamente possível. Enfim, novamente, foi muito bom ter participado e ter te conhecido pessoalmente! Abraços :)))

HELENICE LIMA LEONART:
Sérgio Fantini, acabei de ler Novella, ficção que me pareceu tão real, tão intensamente vivida, me encantei e até me emocionei. Quem diria Maria "Enfim, foi cantada em verso e, agora, prosa. Ao menos escrita, boa lembrança se tornou.” Na folha amarelada da memória? Te desejo sucesso sempre, parabéns!

SANDRA CAVALCANTE:

Ana Elisa Ribeiro, minha mãe (D. Rosa!), foi comigo ao lançamento. Maldito atraso o daquele dia. Ela leu o livro do Fantini e adorou: "Aquele seu amigo escreve beeeemmm, viu!" O seu está começando a ler agora. Levou os dois pra Cachoeiro e disse que é pra emprestar pra família, pros amigos que também gostam de ler. Fiquei toda feliz, orgulhosa... d'ocês dois e dela. Bacana demais ter o livro, por ele mesmo, ganhando a estrada...né não?!

ADRIANE GARCIA, sobre "NOVELLA"

Novella, de Sérgio Fantini, editora Jovens Escribas, 2013.

Terminei ontem, à noite, a leitura de Novella, de Sérgio Fantini.  Terminei sem querer que o livro acabasse. Ou, terminei pensando: “já acabou?”. Um professor de teatro, certa vez, disse-me que essa sensação era uma das maneiras de identificar se um peça era boa: nas ruins a gente fica se perguntando o contrário: “nossa! Será que falta muito para acabar?”
Pois é. O autor mineiro, Sérgio Fantini, oferece-nos contos que remetem a uma juventude onde os personagens estão vivendo sua cultura etária, envolvendo a música, a curiosidade e o escape da angústia através das drogas, a busca, quase sempre sofrível, do sexo, a presença constante da solidão, a procura do amor. E, conjuntamente, contos cujos personagens são crianças, adultos e velhos, imersos na frustração, na solidão e na mesma busca. Aliás, o amor, desejado e frustrante, permeará praticamente todo o livro, num jogo hábil e criativo do escritor.
E foi esse jogo hábil que foi crescendo no livro, visto que é sem dúvida, um livro que cresce. A organização dos títulos foi crucial para que continuássemos lendo, com avidez. A forma literária, o trabalho de forma com que o autor se esmerou, ia-nos mostrando, além das histórias por si, o gosto de quem quer descobrir mais que elas. Talento. Levava-nos Fantini, a um ápice.
Novella, ele explica, são histórias vividas sempre pelos mesmos personagens (como acontece às novelas televisivas). Mas aqui, obviamente – pois estamos falando de literatura – nada está pasteurizado, a complexidade da vida quase a nos deixar sem fôlego, pois identificando-a nos personagens e situações lidas, ficamos a nos perguntar sobre um modo para viver alguma plenitude. Humanizados, os personagens de Fantini nos reforçam o compreender. E esse é um outro critério (pessoal) que eu, como leitora, uso para identificar se um livro é bom.
Num determinado momento, em Dorinha, Sérgio Fantini constrói, em Novella, um conto feliz e, de propósito, muito sutilmente, gera um incômodo no leitor. Ao fim, o autor mesmo nos adverte com uma frase de Bráulio Tavares: “As histórias felizes não nos satisfazem porque sabemos serem intrinsecamente falsas...”
Certamente, para mim, ainda houve o deleite de passear por minha cidade, Belo Horizonte, de reconhecer esse território/cenário e então, trazer ainda para mais perto, alguns dos contos. Mas quase ao fim (ah! Como adoro os livros impiedosos!), as suposições feitas a respeito de uma mulher, de uma relação amorosa, a partir de Maria, sempre uma outra Maria e sempre a mesma; vários contos a deixar-nos assim boquiabertos sem saber se ela é real ou imaginária, se elas são reais ou imaginárias e saber que o próprio lirismo cresce a partir da incompletude dessa relação, dessas... ah! Eu não queria mesmo que o livro acabasse.
Mas Sérgio Fantini soube a medida exata para encerrar: o auge. E é com o gênero supremo, a poesia, que finaliza.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A MEMÓRIA DE ÂNGELO HELEODORO

   


   Em 1981, a convite do meu amigo e também primo Leonardo Cruz de Viterbo, fui assistir ao ensaio da Orquestra Sinfônica Mineira, cuja sede ficava na avenida Santos Dumont, centrão de BH. Enquanto os músicos trabalhavam, os visitantes desfrutavam dos serviços do bar; depois todos se reuniam - sempre sob a batuta do Ângelo, maestro e idealista daquela iniciativa. Frequentei os ensaios e as farras durante todo aquele ano. Realizamos festas e saraus. Num desses, ouvi, pela primeira vez, Ângelo, já bêbado, declamar Navio Negreiro Tabacaria, de memória. 
   Em algum momento, naquele 1981, escrevi um poema chamado Orquestrai, que dediquei a ele.
   O tempo passou, nos vimos muitas e boas vezes, mas também ficamos muitos anos sem nos ver. Fui reencontrá-lo como gerente do restaurante (é/era muito mais que um restaurante) Quinta dos Cristais, em Sabará, nas terras que foram um dia o sítio do meu tio Victor Fantini (que eu frequentei, quando criança).
   Numa das primeiras vezes em que fui lá, ele me surpreendeu recitando, de memória, meu Orquestrai. Havia se passado mais de vinte anos! Num aniversário que comemorei lá (acho que de meus 39), levei Zé da Velha e Silvério Pontes, com todos os músicos e Ângelo me presenteou com uma singela reprodução emoldurada do poema (está na minha sala, claro).
   Poderei guardar muitas lembranças boas desse camarada. 

sábado, 7 de setembro de 2013

LIVROS À MÃO CHEIA

   Se bem me conheço, o desejo de comentar com vagar os livros de leituras mais recentes será postergado até que poeira demais encubra o desejo.
   Então, tomando o bom exemplo do cronista Alexandre Brandão, apenas relaciono aqui (para minha própria lembrança, claro, já que ninguém lê este blog mesmo) alguns bons livros que tenho lido:

- BARATO (Medusa), de Ricardo Pedrosa Alves: facefriend, poeta com imenso domínio de técnicas e cultura literária geral. Gostei especialmente da primeira seção, "Música mutilada".
- ORFANATO e GARAGEM LÍRICA (Annablume), de Marcelo Montenegro: sempre citado pelo Bortolotto, facefriend recente, meio que já somos amigos também. (Diz que tem meu Coleta seletiva guardado há uns anos.) Excelente poesia rocker-blusy-jazzy-junky... mas nada ingênuo: escrita de quem sabe como usar os instrumentos para tocar a canção a seu modo.
- SENTIDO SUSPENSO (Vale em poesia), de Cristiano Silva: me surpreendeu com a orelha: o autor é apresentado pelos locais (sempre periferias) em que morou e vive. Nos conhecemos em roda de cerveja com Eduardo Sabino e Rinaldo de Fernandes (havia mais um camarada...) no 'Lucas'. Textos em prosa poética, uma ira bílica ainda em estado de vulcão. Está fazendo minha oficina no LEP.
- FRAGMENTOS IMPERTINENTES (Leiditathi), de Moisés Augusto Gonçalves: uma das figuras mais marcantes na luta política de BH: criou o personagem Capetalismo, que ficava pelas ruas provocando a atenção do povo para os desmandos do poder. São dezenas de fragmentos em tons poéticos ficcionais com forte sabor autobiográfico.
- A LOUCA REVOADA DOS CHAPÉUS (Clube de autores), de Rui Werneck de Capistrano: contos/crônicas/ensaios na prosa sempre veloz deste multi-artista curitibano. Somos amigos há quase 30 anos e sou testemunha de que a produção dele não dá trégua. Um fenômeno que o mercado editorial não absorveria nem que tomasse conhecimento do que ele faz. Tem outros títulos disponíveis no site da editora.
- CORPÚSCULO NUM PLANO (Jovens escribas), de Daniel Liberalino: contos que deitam e rolam num humor às vezes escrachado, às vezes sutil, sempre usando conhecimentos de medicina e científicos.
- BARBA ENSOPADA DE SANGUE (Companhia das Letras), de Daniel Galera:
romance já muitíssimo bem encaminhado no mercado. Comentei algo sobre ele aqui no blog, mês passado. 
- O ESTRANHO NO CORREDOR (34), de Chico Lopes: conheci os contos de Nós de sombras há alguns anos, fiquei encantado com a perícia do autor. Agora, já tendo me tornado seu amigo, me deleito com a novela de ritmo perfeito, texto limpo com imagens bem definidas. 
- CONTOS BREGAS (Jovens escribas), de Thiago de Góes: livro conceitual: ele escreveu contos a partir de trechos de canções rotuladas como bregas. São histórias divertidas, emocionadas, crônicas do universo que aquelas letras tentam retratar.
- MALDITO SERTÃO (Jovens escribas), de Márcio Benjamim: contos, com ótima pegada literária, recriando temas populares "assustadores": almas penadas, mulas sem cabeça etc.
- O VERSO E O BRIEFING (Jovens escribas), de Clotilde Tavares: ensaio em que a autora analisa alguns folhetos de cordel feitos sob encomenda para publicidade de produtos, empresas, políticos, eventos etc.