domingo, 20 de outubro de 2013

ISADORA KRIEGER LÊ NOVELLA

Coiso, "A vida é assim mesmo" começa num pique ótimo, gosto muito do uso da repetição como link, deixa o texto fluido, "todo mundo tem um passado", "todo mundo tem um passado", e como tem. Ah, e o humor é maravilhoso, aquele tipo de humor que não é um mero entretenimento, é esperto, debochado, "a gente rezava ajoelhados, de lado, e, quando terminava, eu esperava ele levantar e aproveitava a posição, já viu, né?", "Quando conheci, já tinha abandonado a literatura, recebia uma mesada da ex-mulher, juíza de um tribunal. Ô sujeito amargo! Ressentido e mal-humorado. Encontrava a filha domingo. Me levava junto pra almoçar. Depois me trazia em casa, via algum seriado na TV e, ui, ainda era bom com a língua", ai, que vida... 

A primeira frase do texto da "Lanona" já tinha chamado a minha atenção no dia do lançamento do teu livro na Mercearia, "Todo mundo comeu Lanona", muito bom! não sei explicar direito, mas, às vezes, leio a primeira frase de um texto e penso: Nossa é assim que se começa, mesmo, é esta a frase. Por exemplo, não me esqueço da primeira frase de um conto da Andrea Del Fuego para antologia Geração Zero Zero, é assim: "Meu marido é um palhaço", e ainda tinha um truque ótimo, porque no fim o marido era palhaço mesmo, um profissional da risada. Bom, mas voltemos a tua Lanona, aí vem o Obira, que mesmo feio pra caralho comeu a Lanona, feio e chato, "nossa, como Obira é chato", e como isso é verdade, Sérgio, rs, e o Pata, que fala pelos cotovelos e certamente é mais um chato, rs. A quadrilha que você desenvolveu em torno da Lanona é demais, um personagem puxando o outro, até o ótimo desenlace, quando o narrador diz: "Eu também comi Lanona. Comi e ainda como, ela exige (!), diz que casou por amor. Eu acredito.", muito bom isso, mesmo depois da Lanona dar pra todo mundo, "eu acredito", só não sei se eu acreditei no amor da Lanona, rs, na verdade, eu sempre duvido quando o assunto é amor.
Agora vou direto para a "Chuva", que foi um dos que eu mais gostei, bem bonito, Sérgio. Você é muito bom em colocar a gente no lugar do personagem, a gente sente o clima, a atmosfera do ambiente, se transporta mesmo. Neste caso senti até a aflição da espera, e, como o texto é narrado no presente esta sensação aumenta. O trecho que começa com "Não é aquela calça jeans, não é aquela saia curta nem a saia longa....." que vai até "não é ninguém que tenha passado por aqui nesta esquina nos últimos vinte minutos, mas eu ainda espero", além de ser poético, mostra bem como acontece na "realidade", quando você espera alguém, ansioso, olhando os rostos, é ou não é ele/ela, não é, não é. Gosto muito também do mistério deste texto, como você deixa o leitor no suspense e não diz o que aconteceu, só mostra um estranhamento, "o clique do fone no gancho antes que eu pudesse dizer que". Ah, e o final, o final é sutil, lindíssimo, "você, chegando, fecha a sombrinha, olha para o chão e puxa o capuz para as costas", clap clap clap.
E "Daqui pra frente" também é um dos meu preferidos, eu já tinha lido este, você me mandou por e-mail uma vez. Ah, e como dá vontade de alguém que dê as coordenadas de um encontro, assim, com um cuidado, uma atenção, mesmo que os próximos dias se tornassem muito mais difíceis.
Alguns textos a gente lê e sente como uma prosa poética, outros a gente lê e sente como uma poesia em prosa, falando assim, parece que não existe diferença, mas existe sim, isso ficou bem claro para mim quando conheci a poesia do Cesare Pavese. Citei isso porque o "Jamais reutilize uma embalagem vazia" me pareceu o segundo caso. Além disso, achei o texto denso, passa uma sensação de incômodo, de lugar sujo, de solidão dolorida, realmente a "brisa não ameniza".
Agora, "Um amigo de Deus" é foda, putz, Sérgio, que retrato da atualidade, da loucura, da religião, da falta de entendimento entre as pessoas, e mesmo assim, engraçado, tragicômico na verdade. Aqui repito o que disse antes, de como você é bom em colocar o leitor na situação, no clima do ambiente. Achei isso lindo: "De repente, gritos! Olhamos para o cruzamento: dezenas de ciclistas fluorescentes. Passaram velozes e sua animação foi diminuindo na madrugada, nos devolvendo o silêncio e o frio (!)". E isso é genial: "O vento continuava fustigando as folhas da Bíblia quase caindo na sarjeta", e um pouco depois, "Bateu um vento mais forte e a Bíblia, afinal, caiu na sarjeta." uau, que imagem! Outro lance que achei demais, além do nome Denoel (Denoel é muito Denoel, rs), foi o personagem que tira uma com a cara do Denoel, "Ah, eu sou a minha própria igreja." neste momento pensei: Ele tá dizendo que é Jesus Cristo?, e ri, dei muita risada do coitado do Denoel, rs. Bom, e as frases, né? Aquelas tão honestas que a gente até escuta o personagem falar: "E tirou a porra de uma arma da porra da pasta!" aí todos vão embora, entram no ônibus que arrancou rapidinho, embora seja o ônibus que arrancou rapidinho, este rapidinho me pareceu cruel, é como se no fundo estivesse falando das pessoas, ninguém ajuda, todo mundo se manda, sem olhar para trás. Mas um desconhecido paga o táxi para o hospital, quem? quem? o filho? este detalhe e a história com o filho não ficou muito clara para mim, é proposital? ou fui eu que não peguei?
Praia da Estação, ótimo! é hoje! é a gente! é a manifestação! é o Emerson, que toca saxofone na calçada do Conjunto Nacional, mesmo depois do dono da Livraria Cultura, veja bem, o dono de uma livraria, tentar proibi-lo de tocar ali. Ah! Serve até como um impulso, "Revolução não é só uma palavra".
Ah, e a Dorinha, talvez seja o meu preferido, eu senti uma ternura triste, já tinha sentido algo parecido com o Guimarães Rosa. O texto todo é muito bonito, e o final, putz, o final: "De uns tempos para cá, deu para cantar modinhas antigas para me ninar. Muitas falam de amor e generosidade (!!!). Eu tento não esquecer". Sérgio, parece até uma música, um adágio, que dá aquela sensação de nostalgia, de saudade antiga, de algo lindamente triste.
E só no inferno - a salvação. aham!
E a Maria, uma poesia, repleta de imagens lindas, "Maria, de duvidar da minha existência, da minha passagem por sua vida, um gato preto que cruzou a sua estrada de flores coloridas (!), pessoas simpáticas e espirituais, luz e todos esses passos suaves que a humanidade deveria dar." "Como testemunhas os sinos mudos da igreja (!)". "Como se em meu coração brilhassem apenas brocais descolados de uma fantasia de Carnaval (!!!)". Aquele trecho no qual ele conta como a Maria de ninguém, de uma pessoa séria, de roupas e ares caretas se transformou no seu amor, quando lhe disse: "Você sorri bonito", é muito, mas muito lindo, é isso, né? às vezes um gesto, uma frase, muda tudo, anuncia a paixão.
Bom, Coisotini, é mais ou menos isso, poderia falar mais, mas este e-mail já ficou longo e certamente alguns detalhes me escaparam, sempre escapam, acabei citando os textos que mais me marcaram, que mais mexeram comigo. Parabéns pelo livro, pela tua dedicação, é muito claro como você trabalha em cima do texto, se importa com a construção, a lapidação, a concisão, enfim, como é a tua praia mesmo a literatura.
Só mais um detalhe, você sabe como sou chegada numa metafísica, na verdade, numa mistura entre o transcendente e o humano (perdoe as duas palavras tão desgastadas, mas é isso), por tal motivo gosto tanto da Hilda e gostei tanto do Campos de Carvalho, literatura que permanece apenas no uísque, no jazz e no homem largado por uma mulher não me fisga, mas isso já é gosto pessoal. O curioso é que a tua literatura não é nem uma e nem outra, fica entre as duas. Ah, Coiso Coiso, gostei demais!

Um comentário:

  1. Cada leitura do mesmo livro é o mesmo livro e é outro livro. Que rico trocar leituras. Abraço nos dois.

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