sábado, 2 de fevereiro de 2013

CAMPING POP: roquenrou na adolescência


CAMPING POP

                                               
                                                        Tinha sangue
na calcinha dela, devia ser sangue, a saia arriada até os tornozelos, uma das pernas dobrada, qual?, pelos vermelhos, mancha no umbigo, vinho?, não sei, a camiseta arregaçada até os peitos, um deles me olhando, uma coisa, baba, escorrendo da boca – lembranças, tudo muito vago, flashes que pipocam sem me garantir nada, o que pode ter sido real, o que era viagem, o que são desejos e armadilhas da memória – ela respirava, acho, seus olhos estavam abertos mas não me viam, se é que viam alguma coisa, os cabelos longos embaraçados, cachos espalhados emoldurando o rosto muito branco, sobre o colchonete, dentro da barraca, na madrugada quase manhã no camping, ameaça de luz no ponto mais distante do palco, isolados, quase sozinhos nós três

                                                                  Minha barraca colorida,
ferragem de qualidade, minha mochila de lona verde, meu cantil do exército, minha bota de peão de trecho, minha jaqueta e minha calça jeans surradas, minha camiseta do The Who – eu todo dela, minha cabeça, meu vinho, meu fumo, minha merreca de grana, minha pistola – Djé sempre mais esperto, o filho da puta puxa-saco mais gentil prestativo articulado descolou um plástico preto e rapidinho improvisou uma proteção pra nossas coisas – e só por isso ganhou um beijo dela, além dos já rotineiros cafunés na cabeleira black power, mais um sorriso que só as fadas sabem dar – eu otário bancando os convites, o fumo, o vinho, descolando a carona, a barraca – mas o AC era dele – um beijo na boca, caralho

                                                                                Na portaria
um corredor de cordas cavaletes e metade da força policial da cidade – e nós, todos nós, um bando de vagabundos querendo ver a porra de um show de rock, beber um pouco, apertar uns finos, talvez tomar um ácido e Q-Suco e comer pão com salame, dançar na chuva sujos de lama, gritar nossos ídolos, entrar em transe, comer alguém, sei lá, qualquer merda que fizesse nossa vida divertida durante um fim de semana – e aquele corredor polonês, a repressão ostensiva, um despertador fardado pros nossos sonhos moleques
                                                                 
                                              Cães policiais                                                                                    ladravam irados – quando eu vi o AC na unha dele, um pedaço de grafite, uma pontinha de lápis impossível quebrar aquilo, como dividir em dois? e se ela também quisesse?, em três?! – eu tinha que derreter na língua sei lá se derreti ou se engoli inteiro – inteiro? – foram dois ou três pedaços?, quem tomou? talvez os três – policiais ladravam ao longe e ao redor e em toda parte, barracas e pessoas se duplicavam e voltavam ao normal, o palco diminuía e voltava me engolindo, cometas coloridos riscando o céu branco, noite de chuva – quando tentei me levantar só consegui dar um ou dois passos ridículos e voltar pro mesmo lugar, e tentar uma porrada de vezes sempre dançando e me esborrachando no mesmo lugar – e numa pausa não vi os dois, eles deviam estar perto da barraca, mas eu não sabia nem onde eu estava, resolvi andar – gente gente pra caralho, ia me enfiando pelas pessoas, grandes olhos vermelhos e amarelos, alguém tentava me puxar e ficava com um pedaço do meu corpo, um dedo um braço meu cinto minha bolsa de couro – noutra pausa estava colado no palco, luzes, putaquipariu!, luzes e dentro delas os dois trepavam

                                                                                                                    Djé
acendeu uma pontinha e sem olhar pra trás passou pra nós – eu dei um tapinha leve – ele disse, antes do ônibus sair, que tinha um AC pra gente – e ela, dragoa, quase queimou os dedos – e logo tirou um pedaço de doce do bolso da blusa de lã – uma larica incontrolável – e o cantil, que eu reabasteci escorando o garrafão na perna dela, voltou pra mim                                                                                                       

                                                                       Um cara  
de cabelos lisos tipo índio andino tocava violão no banco do trocador, alguém batucava um pandeiro e uma porrada de gente cantava uma daquelas musiquinhas ripongas – e isso me enchia o saco, mas eu não reclamava pra não fazer papel de chato – ela fazia um tipo muito espiritual generosa e pra comê-la eu precisava apresentar alguma elevação mística ou uma meleca qualquer do gênero – e eu queria muito trepar com ela durante o show dos Mutantes – não só eu, claro

                                                      Ela pôs sua perna
esquerda sobre a minha, quer dizer, a coxa esquerda, mas eu não sentia nada, nós dois de calças jeans – enquanto ela enfiava os dedos na cabeleira do Djé sentado à nossa frente – e olhava suave pela janela – às vezes seu perfil harmonizava linhas com as montanhas no horizonte, ou uma árvore à beira da estrada emoldurava sua cabeça confundindo-me folhas e cabelos – eu prendia o garrafão entre os pés e usava meu velho cantil de lata pra fazer rolar o vinho – enquanto ele circulava eu acendia um cigarro ou enfiava as mãos sob a camisa dela – um peito, outro, o umbiguinho, repuxava pentelhos acima da calcinha – ou desmanchava seu penteado que começou com duas tranças, depois uma, depois uma espécie de turbante até que se cansou e deixou os cabelos soltos, vento, um filme só pra mim

2 comentários:

  1. Esse é campeão para nós, hein!
    Renato.

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  2. Prezado Sergio, fantástica a foto do Camping Pop. Você sabe dizer quando foi que o festival realmente aconteceu?

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