CAMPING POP
Tinha sangue
na
calcinha dela, devia ser sangue, a saia arriada até os tornozelos, uma das
pernas dobrada, qual?, pelos vermelhos, mancha no umbigo, vinho?, não sei, a
camiseta arregaçada até os peitos, um deles me olhando, uma coisa, baba,
escorrendo da boca – lembranças, tudo muito vago, flashes que pipocam sem me
garantir nada, o que pode ter sido real, o que era viagem, o que são desejos e
armadilhas da memória – ela respirava, acho, seus olhos estavam abertos mas não
me viam, se é que viam alguma coisa, os cabelos longos embaraçados, cachos
espalhados emoldurando o rosto muito branco, sobre o colchonete, dentro da
barraca, na madrugada quase manhã no camping, ameaça de luz no ponto mais
distante do palco, isolados, quase sozinhos nós três
Minha barraca colorida,
ferragem
de qualidade, minha mochila de lona verde, meu cantil do exército, minha bota
de peão de trecho, minha jaqueta e minha calça jeans surradas, minha camiseta
do The Who – eu todo dela, minha cabeça, meu vinho, meu fumo, minha merreca de
grana, minha pistola – Djé sempre mais esperto, o filho da puta puxa-saco mais
gentil prestativo articulado descolou um plástico preto e rapidinho improvisou
uma proteção pra nossas coisas – e só por isso ganhou um beijo dela, além dos
já rotineiros cafunés na cabeleira black power, mais um sorriso que só as fadas
sabem dar – eu otário bancando os convites, o fumo, o vinho, descolando a
carona, a barraca – mas o AC era dele – um beijo na boca, caralho
Na
portaria
um corredor de cordas cavaletes e
metade da força policial da cidade – e nós, todos nós, um bando de vagabundos
querendo ver a porra de um show de rock, beber um pouco, apertar uns finos,
talvez tomar um ácido e Q-Suco e comer pão com salame, dançar na chuva sujos de
lama, gritar nossos ídolos, entrar em transe, comer alguém, sei lá, qualquer
merda que fizesse nossa vida divertida durante um fim de semana – e aquele
corredor polonês, a repressão ostensiva, um despertador fardado pros nossos
sonhos moleques
Cães
policiais
ladravam irados –
quando eu vi o AC na unha dele, um pedaço de grafite, uma pontinha de lápis
impossível quebrar aquilo, como dividir em dois? e se ela também quisesse?, em
três?! – eu tinha que derreter na língua sei lá se derreti ou se engoli inteiro
– inteiro? – foram dois ou três pedaços?, quem tomou? talvez os três –
policiais ladravam ao longe e ao redor e em toda parte, barracas e pessoas se
duplicavam e voltavam ao normal, o palco diminuía e voltava me engolindo,
cometas coloridos riscando o céu branco, noite de chuva – quando tentei me
levantar só consegui dar um ou dois passos ridículos e voltar pro mesmo lugar,
e tentar uma porrada de vezes sempre dançando e me esborrachando no mesmo lugar
– e numa pausa não vi os dois, eles deviam estar perto da barraca, mas eu não
sabia nem onde eu estava, resolvi andar – gente gente pra caralho, ia me
enfiando pelas pessoas, grandes olhos vermelhos e amarelos, alguém tentava me
puxar e ficava com um pedaço do meu corpo, um dedo um braço meu cinto minha
bolsa de couro – noutra pausa estava colado no palco, luzes, putaquipariu!,
luzes e dentro delas os dois trepavam
Djé
acendeu
uma pontinha e sem olhar pra trás passou pra nós – eu dei um tapinha leve – ele
disse, antes do ônibus sair, que tinha um AC pra gente – e ela, dragoa, quase
queimou os dedos – e logo tirou um pedaço de doce do bolso da blusa de lã – uma
larica incontrolável – e o cantil, que eu reabasteci escorando o garrafão na
perna dela, voltou pra mim
Um cara
de cabelos lisos tipo índio andino
tocava violão no banco do trocador, alguém batucava um pandeiro e uma porrada
de gente cantava uma daquelas musiquinhas ripongas – e isso me enchia o saco,
mas eu não reclamava pra não fazer papel de chato – ela fazia um tipo muito
espiritual generosa e pra comê-la eu precisava apresentar alguma elevação
mística ou uma meleca qualquer do gênero – e eu queria muito trepar com ela
durante o show dos Mutantes – não só eu, claro
Ela pôs sua perna
esquerda sobre a minha, quer
dizer, a coxa esquerda, mas eu não sentia nada, nós dois de calças jeans –
enquanto ela enfiava os dedos na cabeleira do Djé sentado à nossa frente – e
olhava suave pela janela – às vezes seu perfil harmonizava linhas com as
montanhas no horizonte, ou uma árvore à beira da estrada emoldurava sua cabeça
confundindo-me folhas e cabelos – eu prendia o garrafão entre os pés e usava
meu velho cantil de lata pra fazer rolar o vinho – enquanto ele circulava eu
acendia um cigarro ou enfiava as mãos sob a camisa dela – um peito, outro, o
umbiguinho, repuxava pentelhos acima da calcinha – ou desmanchava seu penteado
que começou com duas tranças, depois uma, depois uma espécie de turbante até
que se cansou e deixou os cabelos soltos, vento, um filme só pra mim
Esse é campeão para nós, hein!
ResponderExcluirRenato.
Prezado Sergio, fantástica a foto do Camping Pop. Você sabe dizer quando foi que o festival realmente aconteceu?
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