CASA NO
CAMPO
“Onde eu possa plantar meus amigos”
Tavito
e Zé Rodrix
Todos os dias, Djéssika e Nathaly voltam
juntas para casa. Elas pegam o ônibus na Praça da Estação. O trajeto até o
distrito rural de Silvânia dura cinquenta minutos, se não houver engarrafamento
na saída da cidade, o que acontece quase sempre. Hoje, com o feriado de Corpus
Christi, está pior: quinta-feira, parece que todos os carros estão saindo para
o litoral. Belo Horizonte não tem praia, então qualquer brechinha no calendário
é motivo para essa fuga em
massa. Mas elas são amigas, vão conversando e nem veem quando
o ônibus entra em Silvânia.
“O que você vai fazer hoje, Nath?”
“O de sempre, né? Jantar, estudar...”
“Ah, vamos lá pra casa.”
“Meu pai me mata se eu não chegar logo, Lady
D.”
“Mas amanhã é feriado, tá esquecendo? Eu
converso com ele. Quem sabe você até dorme no sítio?”
“Uai, quem sabe?”
O pai de Nathaly não é muito durão. Ama seus
filhos, preocupa-se com eles e por isso tenta segurar um pouco as rédeas. Lady
D, por outro lado, tem um charme todo especial e sempre consegue o que quer.
Enquanto caminham até a casa de Nathaly, já combinam, animadas, o agito da
noite.
“Eu baixei o disco novo do Sangue Moreno, gostei pra caramba.”
“Mas eles ainda nem lançaram!”
“Coisas da rede, Nath. E o site é dos Estados
Unidos!”
As duas são muito conectadas. Silvânia tem um
sistema de internet por satélite, e a escola pública em que estudam, na
capital, também tem um computador por aluno: nada do mundo virtual lhes é
estranho.
Esta é uma quinta-feira fria, uma neblina
suave deixa as poucas casas da única rua asfaltada parecendo um filme, paisagem
a que elas estão acostumadas. Cercada por montanhas, Silvânia é o ponto mais
frio da região metropolitana.
“A gente podia levar também o seu DVD do
festival de pagode.”
“Nossa! É mesmo. Você ainda não viu, né? Tem
uma hora que eu quase apareço.”
“É mesmo? Você ficou lá na frente, perto do
palco?”
“Fiquei, bem naquela grade de proteção, sabe?”
Djéssika não acredita muito na sua melhor
amiga. Acha que Nathaly gosta de contar vantagem, mas não a contradiz. Sabe que
esta é uma forma dela não se sentir menor.
Porque a família da Nath é um pouco pobre, mora numa casinha muito simples. E,
sendo órfãos, ela e seus dois irmãos são muito carentes. Sua mãe teve uma morte
tétrica: o corpo foi encontrado nu, na beira do rio, sem outras marcas de
violência exceto pelo fato de que estava... sem a cabeça.
“Você podia aproveitar e me ajudar com o
trabalho de Química, não entendi nada daquelas fórmulas.”
“Mas amanhã, né, Nath-my-darling? Hoje nós
vamos só ouvir música, ver o DVD, comer pão de queijo e brincar de mistério.”
O pai de Nathaly está sentado na porta de
casa, pitando um cigarrinho de palha, namorando a lua. As garotas se aproximam.
“Noite, pai.”
“Noite, filha. Noite, Jéssica.”
“Pai, tenho trabalho de escola com Djéssika.
Posso ir fazer na casa dela?”
Sem alterar a voz, ele permite. Estica de novo
o pescoço para a lua enquanto puxa fumaça do palhoso.
A pequena estrada para o sítio é segura, bem
iluminada, apesar de não ser asfaltada. Quando chegam, a mãe está de pé, na
porta da cozinha, espichando o olho para a novela, e Mateus, no chão, brinca
com um sabugo de milho. No ar, cheiro
gostoso de assado. Ela usa um avental cheio de manchas e segura uma faca suja
de sangue.
“Cadê o
pai?”
“Está na cooperativa. Teve assembleia hoje.
Seu pai sabe que você está aqui, Nathaly?”
“Sabe, mãe, sabe. Você fez pão de queijo? Oba!
Vem, Nath, vamos lá pro quarto. Depois da novela a gente vai ver um DVD, tá,
mãe?”
A mãe volta para a cozinha, Mateus acompanha
tudo com olhinhos atentos.
O pai chega quando começa o telejornal.
“Cadê Jéssica?”
“Está no quarto com Nathaly.”
“O que essas meninas estão fazendo lá?”
“Ara, deixa elas.”
“Jéssica! Vem cá! Agora mesmo, anda!”
Ela vem, cabeça baixa.
“Noite, pai.”
“Quem está aí?”
“É Nath, pai.”
“Ah.”
Ele aguça o olhar para a adolescente que sai
do quarto. Ela se aproxima, tímida. Não é gorda, mas suas calças estão sempre
apertadas e seus seios são grandes demais para a idade. Sente que o pai de sua
amiga olha para eles. As pessoas falam coisas...
“Noite.”
“Você está boa, Natália?”
Boa, só?, pensa a adolescente – e sente uma quentura.
“Sim senhor.”
A mãe vem da cozinha trazendo uma panela
fumegante. Mateus observa o movimento. Nathaly continua olhando para o chão,
sem jeito.
“Mulher, tem couve? Então vai buscar. Jéssica,
vai com sua mãe. Vê se pega um pouco de limão também, leva a sacola. E antes de
voltar desliga a bomba.”
Mal as duas saem, ele dá um passo em direção a
Nathaly que, finalmente, o olha no rosto. Ele retribui encarando-a; abraça-a. Ela
respira com dificuldade. Ele força seus ombros, ela se ajoelha. De olhos
fechados, ele tira do bolso um pequeno tubo metálico, parecido com uma caneta. A
garota tenta satisfazê-lo.
Depois de alguns segundos, ele abre os olhos,
afasta os cabelos de Nathaly e, num gesto firme, enfia o tubo em seu pescoço. A
jovem levanta os olhos, atônita, a cabeça caindo pro lado. Ele também se
ajoelha e antes que o sangue esguiche, começa a beber.
Quando a mãe e Djéssika chegam, ele está
sentado ao lado do corpo, pressionando o dedo sobre o buraco para evitar
desperdício. A mãe corre, repõe o canudinho. Lady D olha aquilo com tristeza.
“Puxa, pai, não podia esperar a gente ver o
DVD?”
Ele apenas sorri. Ela volta para o quarto. A
mãe faz barulho sugando com sofreguidão. Ao se sentir saciada, olha para
Mateus, candura no semblante de mãe e um filete de sangue escorrendo pelo
queixo:
“Calma,
meu filho, calma. Logo logo chegará a sua vez.”
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